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O Missionário e práticas alimentares

Hoje eu quero te convidar a ir comigo a uma festa de casamento em Silves, cidade no Amazonas, em fins do século XIX.


A festa em questão faz parte da narrativa do livro O Missionário, do autor Herculano Marcos Inglês de Sousa, paraense nascido em Óbidos, em 1853. Inglês de Sousa é considerado por alguns autores como o introdutor do naturalismo na literatura brasileira.

Eu li o livro O Missionário ainda na graduação e sempre releio porque é maravilhoso, impossível não gostar da genialidade dele. As descrições pormenorizadas sobre os hábitos alimentares me encantou. Silves, a cidade retratada no livro existe, e tem uma longa história.





A cidade ou ""Ilha de Saracá" para os mais antigos, ou "Cidade Risonha" como é conhecido o município de Silves, no Amazonas, é marcado na essência cultural, pela forte ancestralidade indígena e históricas batalhas travadas com os portugueses". (1) Vamos ao casamento, então!? "À noite era o baile em casa do Bernardino Santana para festejar o casamento do filho.(...) A casa do Bernardino Santana estava toda iluminada com lampiões de querosene, e cheia de gente. Estava ali toda a sociedade seleta da vila (...) A noiva, com o véu atirado para trás, o rosto descoberto, as ventas dilatadas, o ventre para diante, sacudia as saias amplas e engomadas, batendo fortemente no chão com os pés calçados em botinas grandes de cetim branco, de carregação, ao som da música monótona e pontuada da Varsoviana. (...) Manduquinha Barata aproximou-se, trazendo uma filha do Costa e Silva para tomar licor (...)

Os criados traziam da cozinha as bandejas com as xícaras de chá e com os doces, os sequilhos, os pães-de-ló e as fatias-de-parida douradas e recendendo a canela e a ovos fritos. Bernardino não se gabara. Era um baile de arromba! Primeiro passaram as bandejas de chá, em alvas xícaras de porcelana lisa. Vieram depois os bons-bocados e os pastéis de nata em grandes pratos de louça azul, e os sequilhos espalhados no fundo da bandeja, sobre um leito de papel cor-de-rosa, recortado em tufos elegantes. Um pão-de-ló de duas libras, corado e fofo, refestelava-se comodamente numa grande salva de prata, riqueza de família (...) Seguia-se o pão quente, em pratos, modesto e sólido, cheirando a manteiga derretida, que era uma consolação; e fechava o cortejo (...) a rica bandeja nova, imitando charão, e contendo seis grandes pratos de fatias-de-parida, apetitosas e louras. O Neves já estava na posse feliz duma chávena de chá, duma naca de pão-de-ló e de duas fatias douradas, e pondo toda a provisão num prato (...) e dizia para o Mendes da Fonseca:- Aqui é que eu queria viver. Isto aqui sempre é outra coisa.Fonseca, mordendo num bom-bocado, concordava em que estava tudo bem-feito. Fora a D. Cirila quem se encarregara dos doces, a pedido do Bernardino, gastara-se muito

açúcar, mas ao menos o Bernardino não se envergonhava. As danças interromperam-se por causa do chá.(...) Os músicos, felizes do descanso, bebiam cerveja. Macário serviu-se de dois bons-bocados, dois pastéis, uma fatia e alguns sequilhos. Não gostava de chá, guardava-se para o chocolate e cogitava no maquiavelismo com que apanharia ao Bernardino mais uma fatia-de-parida, essa coisa fina que lhe proporcionava delicias incomparáveis. Passou uma criada, o sacristão perguntou-lhe, a meia voz, pelo chocolate.- Tem, é depois, respondeu, sem parar, a rapariga. Depois! teria de esperar, e já onze e meia! Paciência, já agora não ia sem tomar o chocolate que lhe prometera o Bernardino, à entrada. (...) Macário ia tomar a palavra (...) quando por trás dele uma voz murmurou:- Espere um pouco. Vou arranjar-lhe a primeira xícara de chocolate. Era o Totônio Bernardino que trouxera da sala a Milu (...) Ia arranjar-lhe uma xícara de chocolate(...) Só se esperava pelo chocolate para terminar o baile. (...) Totônio voltara já da cozinha, com uma xícara na mão, cheirando a chocolate fresco. Mas, de surpresa, em caminho, surgiu-lhe pela frente o pai, com a bandeja de fatias-de-parida. Vendo o filho com a xícara (...) Era uma xícara de chocolate para a D. Milu, que lha havia pedido, por se estar sentindo muito fraca. Não tomara chá, a coitadinha! O pai, furioso, tomou-lhe o chocolate (...) arranjava-se chocolate para a Milu fora de tempo, e contra a sua ordem expressa! Pois ficasse sabendo que a Milu não beberia o chocolate.E raspou-se para a cozinha com o chocolate (...) o pai voltou da cozinha ainda muito zangado. Já dera ordem expressa para não entregarem nenhuma xícara de chocolate senão a ele próprio. Sempre queria ver quem beberia o chocolate sem sua licença! Reparando nas fatias que deixara e no Macário ali perto, acudiu:- O senhor já comeu uma lá na varanda, quer servir-se de outra?

O sacristão, delicadamente, com dois dedos, tirou uma fatia e mordeu-a.

- Estão deliciosas, disse.

- Pudera não, replicou o Bernardino carregando a bandeja, foi um poder de ovos e leite como nunca vi! (...) Macário voltou para a sala de jantar. Era muito tarde, mas já agora não iria sem tomar chocolate. (2) Apenas nesse trecho da narrativa e possível escrever um artigo.

Ingles de Sousa revelava hábitos alimentares importantes da região numa festa de casamento.

A influência portuguesa na alimentação, no consumo dos doces nas festas as fatias- de- parida, os pastéis de nata e pães-de-ló "coisa fina que lhe proporcionava delicias incomparáveis" e tudo com muito ovo e leite. A presença do chá que parava as danças pra ser servido, a cerveja. Os doces que D. Cirila havia feito por encomenda com muita açúcar. Estes doces eram refinados e próprios para serem servidos em momentos especiais. Açúcar era um produto de valor elevado por isso a fala de Bernardino "gastara-se muito açúcar, mas ao menos o Bernardino não se envergonhava". Por fim, o mais aguardado da noite, motivo de impaciência, desejo é disputa hierárquica: chocolate quente. Tido a época como uma bebida refinada, deliciosa e cara, também revelava status e distinção. Ninguém sairia do baile de casamento sem tomar sua xícara de chocolate quente devidamente servido por Bernardino com sua expressa ordem.

A narrativa de Inglês de Sousa é uma fotografia "real" da época. Tem como não gostar? Eu queria mesmo ir num baile deste, acho que ficaria igual Macário... saboreando os bons-bocados, sequilhos e esperando minha xícara de chocolate quente...

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💬 E você? Teria gostado das comidinhas desta festa de casamento na Vila de Silves?

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📚✍🏽 Referências.

📸 ID: 7498, Autor: Chagas, Hernondino; Dias, Catharina Vergolino. Título: Detalhe da igreja da vila Silves (AM); Local: Manaus. Ano: 1966.

📸ID: 7503, Autor: Chagas, Hernondino; Dias, Catharina Vergolino. Título: Vista da vila Silves (AM); Local: Manaus. Ano: 1966. In:https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=47498

📸 (1) Foto: Divulgação/Assessoria Prefeitura de Silves. História de Silves: a cidade risonha do AM completa 355 anos. Por: Nicolas Daniel Marreco, 23 de janeiro de 2018- 15:00- https://emtempo.com.br/amazonas-cidades/92801/historia-de-silves-cidade-risonha-do-am-completa-355-anos (2) Inglês de Sousa, O Missionário. In: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1828











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